ARISTÓTELES E A AMIZADE FRATERNAL”

Carlos Alberto Carvalho Pires

Da Série: Paradigmas da Contemporaneidade

De todas as coisas que a sabedoria nos oferece

para a felicidade da vida, a maior é a amizade”.

Epicuro de Samos (341-270 a.C.)

1-INTRODUÇÃO

Sempre que iniciamos uma reflexão sobre a amizade, algumas perguntas elementares surgem em nosso horizonte de abstrações. A amizade seria uma realidade efetiva? Seria possível termos amigos verdadeiros? Somos amigos legítimos daqueles que vivem muito próximos de nós? Por que alguns, que antes eram nossos leais companheiros, se afastam de nossa vida sem uma causa definida? As respostas aparentemente são simples. Porém, muitos pensadores que analisaram criticamente esta questão, como Aristóteles (382-322 a.C.), Epicuro (341-270a.C.), Hobbes (1588-1679), La Boeti (1530-1563) e Deleuze (1925-1995), não chegaram a um consenso.

O chamado apreço amistoso é real e pode ser experimentado na plenitude, afirmava Aristóteles. Ele, assim como Montaigne (1533-1592 d.C.), dizia que “homens bons” podem nutrir uma salutar amizade entre si. Já Schopenhauer (1788-1860) considerava ser a legítima amizade, uma utopia.

Nesta peça focalizaremos a experiência da amizade pela visão aristotélica, realizando uma atualização de seus conceitos para os nossos dias. Ao final, será possível compreender, mesmo que de maneira sutil, o significado da pergunta-chave que envolve este fascinante capítulo da Filosofia.

2-AS FORMAS DE AMIZADE

2.1-Amizade por Prazer

Em sua obra “Ética a Nicômaco ” (350 a.C.) Aristóteles dividiu a amizade em três categorias distintas. A primeira seria a amizade pelo prazer. A segunda, a amizade pela utilidade. E a terceira, a amizade pela virtude, a opção justa e perfeita.

A categoria inicial é a mais comum de todas. O sujeito se aproxima das pessoas que proporcionam a ele bons momentos em sua vida. Aqueles instantes de alegria e prazer. Se o camarada está feliz, tende a se abrir para novas amizades. Fica mais amistoso. Ninguém tem afinidade por pessoas tristes, estressadas, cabisbaixas e que reclamam o tempo todo. Estas tem, nesta perspectiva aristotélica, mais dificuldades para angariar simpatizantes. E pelo contrário, os indivíduos que esbanjam alegria, manifestam discursos otimistas e aparentemente são felizes, tendem a atrair toda sorte de amigos. Ninguém está preocupado com o caráter , se “bom” ou “mau”, ou com as ideias mais elementares que este felizardo traz em sua alma – vale apenas o prazer momentâneo que ele proporciona.

2.2-Amizade Útil

Na segunda classe se situam as amizades que surgem entre as pessoas apenas porque tal laço de união fornece benefícios , tangíveis ou intangíveis , a um ou a ambos os pólos da relação. Melhor dizendo, alguém está levando vantagem na manutenção da amizade. Seria a chamada proximidade pragmática, utilitarista ou “de resultados”. Esta vantagem pode ser algo concreto, perceptível e de fácil detecção, ou pode ser uma condição mais sutil – muitas vezes o ganho está em simplesmente não sofrer um desgaste em sua imagem política, social, familiar ou pessoal.

Aqui também não há qualquer preocupação com o caráter dos sujeitos. O cidadão pode ser o oposto do amigo em todos os aspectos da vida, desde seus pequenos gostos pessoais, até as ideologias que (pretensamente) defende ou simpatiza. O modo de agir e de falar do indivíduo, o seu verdadeiro ”ethos” ou visão de mundo, não é importante. Isso é irrelevante.

2.3-Amizade Verdadeira

A terceira via da amizade foi intitulada como legítima ou pela virtude. Seria aquela circunstância que vemos retratada nas artes, na poesia, no imaginário popular e na publicidade. É o modelo do amigo ideal, diria Platão (427-347 a.C.). Ocorreria entre homens que desejam o bem. Este seria, para Aristóteles, o requisito essencial deste sentimento fraternal: só homens “de bem” poderiam ser amigos sinceros. É uma relação entre iguais, entre sujeitos francos e honestos. Tais homens seriam chamados “bons homens” , que equivale a serem honrados e éticos.

Este estado de graça não se originaria da amizade em si. Não ocorreria porque surgem momentos de alegria ou porque alguém leva uma vantagem. Aqui o homem bom tem amizade e aproximação porque conhece o caráter do seu amigo, reconhece nele uma similaridade ética e de bons costumes e, portanto, um grande valor pessoal. Isto o consagraria como merecedor de sua proximidade. E esta comunhão fortaleceria a agregação dos mais elevados valores políticos, sociais e morais.

3-ATUALIZAÇÃO DA AMIZADE ARISTOTÉLICA

3.1- Amizade por Prazer

Imagine se Aristóteles fosse enviado ao século XXI por alguma espécie de máquina do tempo. Após se ambientar na nova realidade, certamente passaria a analisar o comportamento dos homens contemporâneos. Qual seria seu entendimento sobre a vigência e o valor de sua teoria da amizade por prazer, em nossos dias? Será que as pessoas ainda cultivariam este tipo de relacionamento, que estava em voga na Grécia Clássica, naquela época perdida nas brumas do tempo?

Certamente ele observaria muitos casos concretos interessantes, em seus passeios peripatéticos pelas cidades. Caminhando por uma zona boêmia, estilo “nightlife” ou “happy-hour” , veria muitos sujeitos papeando felizes, sentados em mesas e balcões “american bar”. O mestre lembrar-se-ia das boas tavernas em Mikonos, Monastiraki ou Plaka (antigos bairros de bares e festas homéricas em Atenas), quando o vinho turbinava as emoções fraternais dos atenienses. Em outra incursão em meio ao povo, seguiria para alguns clubes sociais, onde hordas praticam esportes e jogos, nos finais de semana. A prática de esportes entre pessoas que muitas vezes mal se conhecem, mas que se sentem bem com os esforços musculares e com a adrenalina detonada em comum, sugere haver uma imensa afinidade entre os atletas. Nosso viajante do tempo conheceria grupos cultivadores de “hobbies”, atividade esta que traz satisfação aos maníacos que se reúnem em encontros de toda natureza. Ele também destacaria que os bons contadores de piadas, os narradores de histórias folclóricas e de anedotas, que contam fofocas e casos hilários, sobre seus próprios conhecidos ou sobre pessoas comuns, agregam muitos amigos em torno de si.

A amizade em todos estes casos vem condicionada a flashes de gozo, de exaltação e da eclosão de delírios felizes. Isto faz com que se esqueça das dores da vida, e proporciona um esfumaçamento da noção de espaço e tempo. São poderosos estados alterados de consciência, e isto nos dá uma lufada refrescante e irresistível, que parece nos “encher de vida” – Spinoza (1632-1677) diria que nos aproximamos daqueles que elevam nossa energia vital. “Nada mudou”, bradaria Aristóteles – o espírito humano permanece como em todos os tempos, carente e desejante. Como acreditava Lacan (1901-1981) , o ser humano quer, em suma, ser desejado – e não há nada mais desejado do que um amigo animado, que nos diverte ou nos faz sorrir.

Nosso pesquisador grego lembraria apenas de um mero detalhe: como nós nos metamorfoseamos o tempo todo, esta forma de amizade tem vida breve. As conexões são efêmeras. O que nos alegra hoje, certamente não será fonte de catarse no futuro próximo. Isto não seria um grande problema, para aqueles que sabem que essa impermanência existe. A desgraça, afirma Aristóteles, aflora quando confundimos esta situação volátil com a legítima amizade. Assim, não se deve esperar demais destes encontros hilariantes durante a nossa existência. Sabendo disso, não teremos motivos para lamentações no futuro, quando os amigos se forem. Infelizmente, nosso sábio filósofo constataria que ocorre exatamente esta confusão entre as modalidades de amizade: amigos por prazer estariam acreditando piamente que suas relações seriam amizades virtuosas. Para Aristóteles, estes homens sofrerão desilusões e infelicidades quando descobrirem, na crueza da finitude destas contingências, que os amigos alegres, na essência, eram apenas isso: sujeitos unidos só por momentos de felicidade vã. Desaparece a alegria, desaparece a amizade.

3.2-A Amizade Útil

Agora a preocupação volta-se à investigação da amizade útil. Inicialmente é interessante observar que esta forma de relação só ocorre entre pessoas que possuem, entre si, um desnível hierárquico qualquer. Não é um evento que se cristaliza entre iguais. Um dos pólos tem que exercer algum direito, algum poder, algum comando ou ter ascendência sobre o outro. Só assim é possível um fluxo de interesses emanado do mais forte para o mais fraco. O mais poderoso deve ter algo a oferecer em troca da proximidade. O ganho pode ser tangível/concreto , como ocorre nos campos financeiro, profissional ou patrimonial. O ganho pode ser intangível , como no caso dos dividendos morais, afetivos ou políticos. Se um dos amigos exerce seu papel com este espírito, trata-se obviamente de uma amizade útil, de interesses ou pragmática.

Aristóteles, com essa ideia em mente, diria que amizades entre patrão/funcionários, professor/alunos, chefe/subordinados, cidadão abastado/cidadão carente, intelectual/ignorante, indivíduo com saúde/indivíduo doente, pessoa com saúde mental/pessoa sem saúde mental, comprador com capital/vendedor desesperado, e assim por diante, seriam pautadas pelo princípio da utilidade. O estagirita estranharia o fato de que atualmente está muito popular o discurso de que todos são amigos de todos, que está indicado ter amizades entre desiguais, pois isto seria exemplo de humildade -por parte dos mais sortudos- ou da vigência de uma certa “democracia social”. Ele, porém, enxergaria apenas o tráfego de interesses, por trás desses véus politicamente corretos. Outra constatação é que ter um objetivo comum, como por exemplo, em uma guerra/trincheira, em uma greve, em um protesto de rua, em um abaixo-assinado, em uma torcida esportiva, une os sujeitos em uma espécie de amizade coletiva onde impera, soberano, o pragmatismo. Aristóteles, de formação aristocrática, teria dificuldades iniciais em entender estas relações burguesas, mas sua mente poderosa rapidamente interpretaria a realidade da atual estrutura de poder em vigência. 

Por fim, lembraria nosso caminhante do tempo, assim como ocorre no caso das amizades por prazer, como a capacidade de produzir benefícios é limitada, estas formas de amizade também tendem a ser fluídas – os interesses mudam, as metas das pessoas também, e isso causa um desgaste nas relações fraternais que foram fragilmente estabelecidas. Advém, em seguida, uma indiferença e um afastamento inexorável. Terminado o interesse, termina a amizade.

3.3-A Amizade Verdadeira

Aristóteles, em sua derradeira missão, pesquisaria as amizades verdadeiras. O diferencial, neste terceiro caso, está na essência da pessoa, ou seja, em seu caráter. E este caráter deve ser “bom”, pelo filtro aristotélico. Para o mestre de Alexandre, o amigo perfeito é aquele que desejaria o sucesso e a felicidade real do outro. Ele ficaria alegre com as conquistas e vitórias de seu parceiro, mesmo se for um colega de trabalho, um vizinho ou um parente.

Se o amigo vai bem na vida afetiva, financeira, profissional, social , se recebe láureas e homenagens públicas, se está bem de saúde, tudo isso faz com que o amigo virtuoso fique feliz. Não há espaço para aquele pecado capital tão frequente nas almas humanas : a “tristicia de alienis bonus”, ou simplesmente, a inveja. Na amizade entre justos esta dor amargurada da alma não ocorre.

O sábio grego, ainda preocupado em comprovar suas especulações, proporia uma boa maneira de detectar se um amigo é legítimo, realizando um singelo exercício de observação do comportamento humano. Diria a nós que olhássemos em volta, e certamente veríamos uma cena hipotética em que um cidadão confessa a um amigo que se sente muito contente, pois foi promovido, adquiriu um Jaguar, um de seus filhos entrou em Medicina na USP, e planejam passar o Natal em Bora Bora. Qual será a reação do amigo ouvinte? Se ele demonstrar sinceramente estar alegre com estas novidades, ele é um amigo legítimo. Se, por outro lado, manifstar uma angústia repentina ou uma sensação de vazio, se ficar depressivo ou constrangido instantaneamente, não é um amigo de virtude. Talvez apenas um amigo de prazer ou útil – ou nem isso. Se o convidarem para uma festa em homenagem ao homem feliz, certamente não irá, inventando desculpas tolas – tudo isso ratificaria que entre eles não floresce uma amizade virtuosa.

Acrescentaria o mestre que, como as amizades legítimas se vinculam ao caráter inquebrantável das pessoas, estas relações não se corrompem até se desaparecerem as alegrias e os propósitos da vida prática. Não há ex-amigos. Perder uma amizade leal seria um paradoxo aristotélico – mesmo existindo distância física ou temporal, as amizades verdadeiras são eternas. (infelizmente, neste momento, a máquina do tempo levou nosso companheiro de jornada de volta aos Arcos do Peloponeso)

4-CONCLUSÃO

Aristóteles, hoje, nos ajudou a entender um pouco mais sobre a amizade, um fenômeno do cotidiano que tem grande valor em nossas vidas, seja entre Colunas, seja no mundo comum. Após esta jornada no tempo e no espaço, fica mais fácil compreender o valor das perguntas enunciadas na introdução.

O pensamento do melhor aluno da Academia de Platão, apesar de pertencer a outra era, ainda é uma referência válida. Suas considerações possibilitam uma reflexão sublime sobre as relações humanas. Esta experiência nos espanta, pois captamos ecos de suas inquietações ainda reverberando em pleno século XXI.

A visão de mundo do fundador do Liceu nos entusiasma e, acima de tudo, nos fascina. Ser “amigo sincero” das idéias de Aristóteles é motivo de euforia e razão para nos sentirmos úteis. Ele figura no panteão da mais justa sabedoria, pois a força e a beleza de suas conjecturas nos conduzem aos mais altos degraus na escada do conhecimento.

Carlos Alberto Carvalho Pires

Referências

ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Brasília: UNB, 1985.
DELEUZE, G. O Abecedário Deleuze. Entrevista com Claire Parnet. Vídeo.
EPICURO. Máximas e Sentenças. Col. Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1972.

MONTAIGNE, M.Ensaio. 1ª. Edição. Coleção Os Pensadores. Volume XI. São Paulo: Abril, 1972

SCHOPENHAUER, Arthur. Aforismos para a Sabedoria de Vida. São Paulo: Martins Fontes, 2000.